quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

MANDIOCA: POUPANÇA ENTERRADA, LITERALMENTE

.José Lemos*

Tentei demonstrar no meu livro "Mapa da Exclusão Social doBrasil: Radiografia de Um País Assimetricamente Pobre" que vivemos numPaís de grandes contrastes. As regiões Norte e Nordeste são maiscarentes do que as demais regiões do Brasil. No livro aferimosexclusão social através de indicadores de privações de serviçosessenciais e de renda. Talvez esta seja uma forma mais adequada demedir, com rigor, os níveis de pobreza, haja vista que, o instrumentonormalmente utilizado, a "linha de pobreza" experimenta oscilações aosabor das variações das moedas conversíveis. Aquela seria uma linhaimaginária que, no terceiro mundo, passaria ao nível de US$ 1,00diário por pessoa. Acima deste valor caracterizaria a não pobreza. Coma crise mundial atual, o dólar americano flutuou de R$ 1,50 no começodeste ano, para R$ 2,50 nesta quinta-feira, 4 de dezembro de 2008.Assim, no Brasil, quem tinha renda diária de R$ 2,00 em março não erapobre, segundo este conceito. Em dezembro, passou a ser. Como a rendapessoal não flutua como o faz a taxa de cambio, a "linha" é sinuosa, enão uma reta como querem os defensores dessa forma de medir queescamoteia as reais causas da pobreza. Os partidários desseraciocínio sugerem que o mero crescimento do PIB resolveria oproblema, o que não é verdade, sobretudo num País de apropriação tãodesigual da renda como é o Brasil.

Talvez um caminho menos árduo para incorporar a renda comoum dos elementos para aferir pobreza é aferi-la em termos de saláriosmínimos, mesmo sabendo-se que o valor atual não corresponde ao quepreceituam os fundamentos da sua criação. Por este caminho, veremosque dos 5.563 municípios contabilizados pelo IBGE em 2005, em 1.861deles (33,5%), o PIB per capita mensal era inferior a um saláriomínimo (R$ 300,00 por mês em 2005). Nesses municípios viviam 33milhões de brasileiros que representavam 18% da população total. Arenda média nesses municípios era de apenas 71% do salário mínimonacional. A sua distribuição corrobora com o tamanho das desigualdadesbrasileiras em apropriação da renda. De fato, 1.459 dos 1.668municípios do Nordeste (87%) e 173 dos 449 municípios do Norte (39%)fazem parte desse grupo.

Quando incluímos na análise o Índice de DesenvolvimentoHumano e o Índice de Exclusão Social desses municípios, observamos quesão todos equivalentes ao que há de pior em paises africanos comoZambia, Rwanda, Mali, Nigéria, Burundi, dentre outros. O grandediferencial, da maioria dos nossos municípios pobres, e que serve decolchão amortecedor do fantasma da fome, é que, por aqui se cultiva amandioca em todos eles, ao passo que por lá não há essa possibilidade.Todos eles têm ainda grande proporção da população rural na suacomposição. E essa população cultiva sempre algum pedaço de terra comessa cultura que funciona como "poupança enterrada" e redentora.

A mandioca é de uma importância social imensurável para oBrasil rural pobre. Os agricultores a cultivam, e durante todo o anotem alguma produção. Quando há crise de falta de comida nas áreasrurais, o que é freqüente, sobretudo onde existe pouco ou inexisteflorestas naturais com fruteiras, os agricultores vão à sua pequenaroça, colhem alguns quilos de mandioca e a transformam em farinha ougoma. Quando conseguem uma produção maior do que as necessidadesalimentares da família, vendem o excedente produzido. Sempre há quemcompre. Transformam as raízes em dinheiro que serve para comprar osmantimentos que não são produzidos na roça. Quase sempre a mandioca seconstitui na principal, se não na única, fonte de renda monetária dasfamílias rurais que não tem pensionista, aposentado, ou alguémrecebendo transferências do governo Federal.

Não obstante esta importância observa-se um descaso dopoder público para com essa atividade e, de resto, com os agricultoresem geral. No Nordeste a produtividade da terra é baixa, algo em tornode 11 toneladas por hectare. No Sul e no Sudeste extrai-se 25 a 30toneladas por hectare de raízes de mandioca. Por outro ladodifundiu-se nos brasileiros o hábito de consumir produtos derivados dotrigo, que o Brasil importa, em grande parte. Em épocas de crisecambial esta matéria prima fica cara. Se houvesse o incentivo desubstituição do trigo por fécula de mandioca haveria ganhos econômicose sociais imensuráveis, além das externalidades positivas ao ambiente,haja vista que a mandioca é grandemente cultivada por agricultoresfamiliares que, para minimizar riscos, têm como tática desobrevivência a diversificação no cultivo das suas áreas, formando comoutras lavouras consorciadas a proteção do solo contra os efeitosnefastos da erosão.

Seria interessante retomar o projeto do Deputado Aldo Rebelo queestabelece a adição de um percentual de fécula de mandioca na farinhade trigo, o que é tecnicamente viável. Como não parece ser dointeresse dos grandes produtores de trigo do Sul e Sudeste o projetoficou esquecido em alguma gaveta. Seria o caso de resgatá-lo para odebate.

*José Lemos escreve aos sábados neste espaço. Professor Associado na Universidade Federal do Ceará. lemos@ufc.br.

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