segunda-feira, 10 de outubro de 2011

SOBRE A NATUREZA DA EXTENSÃO RURAL PARA O DESENVOLVIMENTO AGROECOLÓGICO

Jean Marc von der Weid
AS-PTA
Agosto/ 2011

A agroecologia é a ciência do manejo integrado dos recursos naturais renováveis – do solo, da água, da agrobiodiversidade e da biodiversidade como um todo. Embora este sistema não deixe de artificializar a natureza ele busca manter a maior analogia possível com os sistemas naturais, ao contrário dos sistemas convencionais que buscam a máxima artificialização possível da natureza.

O corolário desta definição é que, ao buscar mimetizar os sistemas naturais a agroecologia leva à criação de sistemas produtivos com alta diversidade de espécies vegetais e animais, isto é, de culturas e de criações e à manutenção de parcelas da vegetação nativa de forma integrada ao conjunto. Como a natureza tende à criação de sistemas diversificados e complexos a agroecologia, por analogia, também leva à criação de sistemas diversificados e complexos.

Cada propriedade agrícola está caracterizada pela diversidade das suas condições naturais. Os solos, relevo, disponibilidade (ou não) de água na forma de fontes, riachos e lagos, a cobertura vegetal, o fotoperíodo, a incidência de ventos e chuvas, os riscos de geadas, enchentes e secas são diferentes de região para região, de propriedade a propriedade e até dentro de cada propriedade. Alem disso, as propriedades se diferenciam também pelo seu tamanho e forma, pelo tamanho e composição da família, pela experiência dos produtores, pela sua cultura, pela disponibilidade de recursos financeiros, pela maior ou menor tendência a aceitar riscos, pela inserção dos produtores em espaços de socialização e pelo acesso dos mesmos aos mercados.

Estes múltipos fatores de diversidade fazem com que não exista qualquer possibilidade de se propor modelos produtivos generalizáveis a serem adotados de forma maciça por amplos conjuntos de produtores e, muito embora existam similitudes entre sistemas produtivos em condições semelhantes o desenho de cada sistema individual será necessariamente diferente.

A criação destes sistemas complexos e diversificados (e individualizados) é o mais importante desafio para a promoção do desenvolvimento agroecológico. Os especialistas em agroecologia costumam afirmar, com razão, que os sistemas agroecológicos são intensivos em conhecimentos enquanto os sistemas convencionais são intensivos no uso de insumos externos.

De onde poderá vir este conhecimento complexo e diversificado específico para cada propriedade? A experiência mostra que as abordagens de extensão rural que buscaram desenvolver modelos a serem seguidos pelos produtores quer em fazendas experimentais e demonstrativas quer em propriedades de agricultores inovadores resultaram em resultados magros e altamente intensivos e dispendiosos em termos de assistência técnica.

A abordagem de promoção do desenvolvimento elaborada pela AS-PTA em 28 anos de experiência (e múltiplos erros de percurso) leva em conta o fato de que é o agricultor quem tem que descobrir qual o melhor desenho para um sistema agroecológico em sua propriedade. Ele não pode ser considerado “um livro em branco” no qual os técnicos vão “escrever” o que ele deve fazer até porque nenhum agricultor aceita esta situação já que os riscos das mudanças do sistema são seus e não dos técnicos. Cada agricultor tem uma história com experiências e conhecimentos herdados da tradição camponesa em que está inserido e outros adquiridos por inovações próprias ou copiadas a partir de informações de fontes diversas (outros agricultores, técnicos, empresas compradoras de matérias primas ou vendedoras de insumos, revistas, folhetos, televisão, etc.). Ele tem um conhecimento único sobre o seu próprio sistema produtivo muito embora muitas vezes este conhecimento possa estar marcado por avaliações incorretas do potencial dos seus recursos naturais ou dos efeitos das práticas que utiliza. Toda a estratégia da extensão rural passa pelo aumento dos conhecimentos dos princípios da agroecologia e das práticas que melhor possam se adaptar às suas condições específicas, seus recursos naturais, seus recursos financeiros, sua disponibilidade de mão de obra, seu acesso aos mercados, aos riscos ambientais a que o seu sistema está submetido. Nesta visão todo agricultor é, ao seu nível, um experimentador e adaptador dos novos conhecimentos e técnicas que vai adquirindo.

Este processo de experimentação coletiva se faz de vários modos. Antes de mais nada, é preciso que os agricultores realizem um ou vários diagnósticos para avaliar seus sistemas de produção à luz dos conceitos da agroecologia que vão lhes sendo apresentados pelos técnicos da extensão rural e/ou por agricultores mais avançados na transição agroecológica.

A apresentação dos conceitos da agroecologia se faz em uma combinação de visitas a sistemas produtivos mais ou menos avançados na transição agroecológica e a sistemas naturais onde os agricultores podem fazer comparações com seus próprios sistemas.

O exercício dos diagnósticos tem mais de um propósito. Um deles é aprofundar os princípios da agroecologia através de sua aplicação a sistemas produtivos reais. Outro é o de identificar disfunções dos sistemas produtivos segundo os princípios da agroecologia. Tanto a apresentação dos conceitos da agroecologia como a sua aplicação nos diagnósticos de agroecossistemas se fazem de forma coletiva de maneira que os conhecimentos de cada agricultor sejam socializados e discutidos criticamente pelo conjunto e pelos técnicos da extensão rural ou da pesquisa participantes dos exercícios.

Os diagnósticos iniciais não precisam ser exaustivos e identificar e analisar a fundo todos os problemas e potencialidades dos sistemas produtivos. Este processo seria demasiado pesado (equívoco freqüente na nossa abordagem inicial) e desnecessário. Os diagnósticos iniciais permitem estabelecer uma tipologia de sistemas produtivos no público alvo de maneira a organizar as etapas subseqüentes de busca de soluções potenciais e de sua experimentação.

Definida a tipologia a partir de sistemas e problemas semelhantes os grupos de agricultores se organizam e passam a realizar diagnósticos temáticos para compreender melhor os problemas e identificar as condições que balizarão a busca de soluções.

É importante notar que, embora estes exercícios sejam feitos pela análise de sistemas produtivos reais de vários agricultores identificados como representativos das realidades diversas de um público determinado, não se procura diagnosticar individualmente todas as propriedades. Isto seria um processo demasiado longo e exaustivo. Cabe aos agricultores participantes dos exercícios aplicarem o que aprenderam coletivamente a seus sistemas individuais.

Organizados por tipo de sistema produtivo e pelos problemas que, coletivamente, identificaram como mais importantes para iniciar a transição agroecológica os agricultores passam para a etapa de identificar as possíveis soluções para os mesmos. Este inventário de propostas técnicas busca levantar tanto as práticas já conhecidas por algum ou alguns deles e as que os técnicos e pesquisadores podem apresentar. O aporte dos técnicos pode ser tanto de conhecimentos científicos como de práticas de outros agricultores que não fazem parte do grupo alvo em questão.

Sempre que possível a apresentação das alternativas técnicas deve ser feita a partir de exemplos práticos através de visitas aos agricultores ou aos centros experimentais onde as mesmas são visíveis. Os detentores do conhecimento (empírico ou científico) expõem as suas práticas e as discutem com o coletivo de forma a que o conjunto possa avaliar a sua pertinência para o conjunto ou para parcelas deste conjunto.

A partir do aprendizado coletivo os agricultores selecionam as práticas que vêem como potencialmente mais interessantes para seus sistemas produtivos e discutem como vão experimentá-las. Não se procura definir um sistema único de experimentação mas quais os critérios de avaliação que cada um acha mais pertinentes e as formas de realizar os testes. Cada um escolhe como vai realizar a experimentação da forma que achar mais adaptada às suas condições. Durante o processo de experimentação os agricultores organizam visitas às propriedades uns dos outros e discutem as formas dos experimentos e seus resultados parciais. As percepções e os resultados de umas e outras experiências vão informando cada um dos experimentadores que vão ajustando ou modificando suas práticas segundo as avaliações que realizam.

Este processo de experimentação é contínuo. De fato, nenhum agricultor modifica seu sistema produtivo de uma só vez pois os riscos seriam elevados. Passo a passo eles vão testando diferentes práticas, enfrentando novos problemas ou outros já identificados mas não priorizados inicialmente, sempre trocando experiências com outros praticantes. Como disse um agricultor da Zona da Mata, “a experimentação na transição agroecológica não tem fim”.

Como se pode perceber, esta abordagem implica em mobilizar as capacidades de todos os agricultores para colocá-las na dinâmica social da experimentação. Os ritmos da transição serão distintos entre os agricultores em função da capacidade maior ou menor de cada um ou de maiores ou menores potencialidades dos sistemas adotados em cada propriedade, ou da disponibilidade de recursos para investir neste esforço.
Esta abordagem implica também em se explorar os agricultores com maior capacidade de inovação e/ou de comunicação de suas experiências. Há um papel de formação assumido pelos agricultores mais adiantados no processo de transição, quer fazendo treinamentos em outros locais quer recebendo agricultores para conhecerem suas experiências. Por outro lado, esta dinâmica de visitas, cursos, experimentações, etc. cobra uma boa capacidade organizativa do público alvo e uma atividade de coordenação dos dirigentes. O processo organizativo desta experimentação em massa vai sendo criado no decorrer do mesmo e sempre despontam agricultores com mais vocação e capacidade para assumi-lo.

Os custos desta abordagem não se resumem, portanto, ao pagamento das horas técnicas dos profissionais da extensão mas também ao pagamento dos dias ou horas de trabalho entregues por aqueles agricultores que assumem os aspectos organizativos ou de formação. Há também alguns custos da própria experimentação. Estes custos normalmente não são elevados individualmente mas podem ser significativos quando se considera a quantidade de experimentações em curso.

A este processo voltado para a transformação dos sistemas produtivos devemos acrescentar a necessidade de analisar e organizar novas formas de acesso a mercados para valorizar os resultados agronômicos alcançados. Normalmente os ganhos dos agricultores são obtidos através de melhoria dos rendimentos das culturas e das criações, menores riscos frente a ataques de pragas, doenças e invasoras ou frente às variações climáticas e menores custos de produção. O acesso a mercados orgânicos diferenciados pode ser um plus, mas não é uma condição necessária para o sucesso desta abordagem.

É preciso lembrar que muitas vezes é necessário um esforço dirigido aos agricultores mais pobres ou os menos propensos a participar em processos coletivos. Atrair e apoiar este público especial é responsabilidade tanto das organizações dos agricultores como das entidades de assistência técnica. Muitas vezes se torna preciso fazer diagnósticos sobre o comportamento social desta camada de agricultores, para entender e enfrentar as razões que os levam a não se inserir espontaneamente nas dinâmicas sociais de experimentação.

A descrição desta abordagem serve para mostrar a impossibilidade de se promover a transição agroecológica através da metodologia implícita nas chamadas de ATER definidas pelo DATER/MDA. Nestas chamadas o esforço principal e quase exclusivo está colocado na assistência técnica individual, implicando em um processo de difusão de tecnologias dos técnicos para os agricultores. Não há recursos nestas chamadas para financiar as atividades das organizações dos produtores nem para pagar os dias de trabalho perdidos pelos agricultores mais engajados em visitas e cursos. Também não há tempo para os técnicos pesquisarem alternativas tecnológicas o que pressupõe que eles já sabem as respostas para todos os problemas que podem encontrar. Também não há recursos para o fomento às experimentações.

A forma utilizada pelo DATER para definir o tamanho do público também é arbitrária. A prática mostra que a relação técnico/agricultor pode ser muito mais intensiva no início do processo e muito menos nas fases mais avançadas. Para dar um exemplo, no programa de desenvolvimento local da AS-PTA na Paraíba começamos com uma relação de um técnico para trinta agricultores e hoje esta relação está em um para quinhentos, com tendência para se tornar ainda menos intensiva a medida que se expande a base de agricultores participantes e se consolidam as experiências bem sucedidas. Esta expansão, entretanto, implica em envolver mais agricultores tanto na organização como no apoio à experimentação.

Para resumir, esta abordagem de promoção da transição agroecológica implica em fortalecer a participação tanto das bases como das organizações dos agricultores, garantindo o empoderamento do público. Este processo vai se refletir não apenas em um aumento da eficiência produtiva e no aumento de renda, mas na inclusão social cidadã da agricultura familiar já que conduz à uma maior conscientização e socialização dos participantes, com reflexos no tratamento de outras questões de interesse desta base.

O desafio que se coloca tanto para o DATER como para todas as entidades, públicas ou privadas de ATER é gerar um processo de financiamento da extensão rural que permita e não engesse esta comprovadamente bem sucedida abordagem de promoção da transição agroecológica.

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